No Dia da Consciência Negra, revisitamos as trajetórias inspiradoras de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, duas escritoras negras que romperam barreiras, transformando suas experiências em poderosas ferramentas de denúncia e resistência. Suas histórias de vida são tão impactantes quanto suas obras, sendo marcadas por uma luta constante contra o racismo e a desigualdade.
Carolina Maria de Jesus: A Escrita que Saiu do Lixo para o Mundo
Carolina nasceu em 1914, em Sacramento, Minas Gerais, em uma família pobre e negra. Desde cedo, enfrentou o racismo e a exclusão social, tendo frequentado a escola apenas por dois anos. Seu amor pela leitura e escrita, no entanto, a acompanhou durante toda a vida, mesmo enquanto trabalhava como catadora de papel nas ruas de São Paulo.
Foi entre os cadernos descartados que Carolina começou a registrar suas reflexões e o cotidiano da favela do Canindé, onde morava. Sua obra mais conhecida, Quarto de Despejo, publicada em 1960, rapidamente se tornou um sucesso nacional e internacional. Carolina descreveu com detalhes a fome, a violência e a exclusão, mas também sua indignação frente ao preconceito racial. Apesar da fama repentina, Carolina continuou a enfrentar preconceitos, sendo frequentemente desqualificada como escritora por sua origem humilde e por ser negra.
Em sua luta pessoal, Carolina insistia na importância da educação e da escrita como formas de resistência. Ela dizia:
“Eu escrevo para aliviar a dor da fome e para mostrar ao mundo a realidade que muitos preferem ignorar.”
Carolina Maria de Jesus: Um Olhar Cru sobre a Realidade das Favelas
A autora, em Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, apresenta um retrato visceral da vida nas periferias. A obra é composta por trechos de seu diário, onde ela registra com franqueza a luta diária pela sobrevivência. Um exemplo marcante é quando ela descreve a fome:
“A fome é amarela. A cor da fome é amarela.”
Nesse trecho, Carolina dá cor à fome, uma forma de tornar tangível um sofrimento que é, muitas vezes, invisibilizado. Seu olhar crítico expõe como a pobreza extrema e o racismo estrutural condenam muitas famílias a viver à margem da sociedade.
Outro momento emblemático é quando ela reflete sobre o papel das mulheres na favela:
“A mulher tem que ser mais forte que o homem. A mulher tem que lutar para não ver os filhos passando fome.”
Carolina denuncia a sobrecarga e a resiliência das mulheres negras, que, além de enfrentarem o racismo, carregam o peso de sustentar suas famílias.
Conceição Evaristo: Escrevivência e a Construção de Identidades
Conceição Evaristo nasceu em 1946, em uma comunidade pobre de Belo Horizonte. Filha de empregada doméstica, ela começou a trabalhar cedo, mas nunca deixou de estudar. Com esforço e dedicação, tornou-se professora e, mais tarde, doutora em Literatura Comparada. Sua vivência no Brasil racista e desigual serviu de inspiração para sua escrita.
Conceição também enfrentou barreiras na publicação de suas obras, sendo frequentemente ignorada por editoras que não viam valor em histórias negras. Porém, sua persistência resultou em um corpo de trabalho que é amplamente reconhecido hoje. Sobre o racismo, ela escreve:
“A palavra escrita tem força. É a minha maneira de resistir e de reivindicar o meu espaço.”
Conceição Evaristo: Memória e Resistência Afro-Brasileira
Conceição Evaristo, por sua vez, constrói suas histórias com base no conceito de “escrevivência“, termo que ela utiliza para descrever uma escrita que é ao mesmo tempo testemunho e resistência, profundamente enraizada nas experiências vividas por mulheres negras e marginalizadas. Em Olhos d’Água, Evaristo dá voz a personagens que enfrentam as adversidades impostas pelo racismo e pela pobreza, assim como violência policial e misoginia .
No conto “Olhos d’Água”, por exemplo, a dor do racismo é simbolizada pelas lágrimas de uma mãe que perde seu filho para a violência:
“As águas que saíam dos meus olhos eram tantas que poderiam lavar o mundo.”
Aqui, as lágrimas tornam-se um elemento poderoso de denúncia, mas também de resistência e memória coletiva. Conceição reflete sobre o impacto da violência racial, um tema que é central em suas obras.
Outro exemplo forte está em Ponciá Vicêncio, onde a protagonista luta para se reconectar com suas raízes e superar os traumas de um sistema opressor. A obra explora a alienação que muitos negros enfrentam ao serem forçados a abandonar suas origens:
“Ponciá buscava nas águas do rio o reflexo de quem ela foi, de quem ainda poderia ser.”
O rio, como símbolo de identidade e ancestralidade, representa o desejo de retorno às origens e a busca por autoconhecimento em meio à opressão.
A Luta Contra o Racismo através da Literatura
Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo utilizaram a literatura como plataforma para denunciar as injustiças sociais e raciais. Carolina expôs a miséria das favelas, enquanto Conceição dá voz às memórias e vivências negras, conectando passado e presente. Ambas enfrentaram preconceitos em suas vidas pessoais e profissionais, mas suas histórias de luta e superação são testemunhos poderosos de resiliência.
No Dia da Consciência Negra, celebramos não apenas suas obras, mas também sua contribuição inestimável para o movimento racial no Brasil. Elas nos ensinam que, através da palavra, é possível resistir e transformar. Que suas vozes continuem a ecoar, inspirando futuras gerações a lutar por igualdade e justiça.